1ª Jornada de TRS
O Desafio de ser um Terapeuta Relacional Sistêmico
Psicóloga Msc. Maria Isabel Caminha
Semana passada, contando para uns amigos minha viagem de férias, estava falando sobre a dificuldade em entender os portugueses na minha primeira semana em Portugal, até brinquei dizendo que compreendia perfeitamente o tal jogador brasileiro que desistiu de atuar no futebol lusitano por não entender o que eles diziam. Então uma amiga jornalista me contou a história de um conhecido seu, arquiteto exilado 10 anos em Portugal, que tinha a mesma dificuldade e a sintetizou assim: “os portugueses têm uma lógica lockiana e os brasileiros cartesiana”. Falamos a mesma língua, mas a construção do pensamento é diferente.
Começo com essa metáfora para falar a respeito dos desafios de ser uma terapeuta relacional sistêmica. Bebemos da mesma fonte, falamos a mesma língua, mas os caminhos fizeram com que nossa construção de pensamento se distanciasse. Vou então, falar um pouco da minha trajetória profissional para localizá-los melhor.
Meu primeiro contato com a teoria relacional sistêmica foi em 1986, quando iniciei meu estágio em clínica em Florianópolis. Minha supervisora havia estudado com Solange, assim como várias professoras de minha formação. No início, com toda a teoria recém absorvida, conseguia visualizar o que era ser um terapeuta relacional sistêmico, mas durante a minha formação eu tinha um sentimento de que algo estava se perdendo, já não me sentia tão “sistêmica” quanto no início, mas ainda assim muito próxima teoricamente dela. Com o passar dos anos e a necessidade de experimentar diferentes terapeutas e supervisores, fui me tornando uma terapeuta amorfa e me sentindo totalmente sem rumo, a ponto de, na tentativa de ter algo mais concreto onde pudesse estar baseada, iniciar uma formação em psicanálise, da qual fui gentilmente “convidada a me retirar”, - era impossível pensar linearmente depois de anos de prática em sistêmica, mesmo que distanciada da fonte. Apesar de me intitular como uma terapeuta relacional, eu estava bem longe dessa prática, era um título que eu usava por ter recebido ele na minha formação. Percebia também que essa mesma dificuldade de integrar o pensamento e a ação de forma sistêmica não era minha exclusividade, outros terapeutas que também tinham a mesma formação, que utilizavam as técnicas sistêmicas em seu trabalho acabavam perdendo ou não conseguindo integrar o “ser sistêmico”, o que acarretava a perda do funcionamento sistêmico em seus trabalhos.
Até que decidi vir para Curitiba, no início dos anos 2000, começar supervisão e terapia com a Solange. Nunca vou esquecer suas palavras iniciais, foram mais ou menos essas: “Bel, eu estava te esperando há muito tempo...”. Pronto, ali estava estabelecido o padrão da relação, e por mais difícil que tenha sido trabalhar e corrigir todos os desvios sabia que tinha um continente firme, seguro e acolhedor para aportar, e que ficaria sem rumo novamente só se fosse minha escolha. A partir disso, meu primeiro desafio foi, e continua sendo, buscar ao máximo a coerência na minha postura como pessoa e terapeuta relacional sistêmica, já que elas são indissociáveis. Portanto, é imprescindível treinar e avaliar constantemente minha postura.
Para exemplificar isso, podemos verificar quão assustador é ver o que acontece em alguns eventos ditos “sistêmicos”. No ano passado participei de um deles em Florianópolis e fiquei profundamente entristecida ao ver que a maior parte da platéia, todos se intitulando “terapeutas sistêmicos”, julgar efusivamente o comportamento de uma mãe com seu filho, sem qualquer compreensão da trama relacional da família ou compaixão pelo sofrimento dela.
Com os anos de prática “desnorteada”, percebi que acabei me tornando um grande ouvido. Eu estava com o cliente, mas era muito mais “um corpo presente” do que uma terapeuta sistêmica, e muito menos uma terapeuta relacional sistêmica. Então, estar de olhos e ouvidos abertos para enxergar e ouvir a forma, de modo que eu possa perceber o padrão de funcionamento dos clientes e os aprendizados que precisam fazer é mais um desafio constante na minha prática como terapeuta relacional sistêmica. Há alguns anos atrás não poderia imaginar que as histórias que tanto me “seduziam” poderiam se tornar enfadonhas em alguns momentos.
Pode parecer incrível, mas nunca havia trabalhado, ao longo de vários anos, a questão do padrão da relação terapêutica. Esse, portanto, é mais um desafio: atenção constante ao padrão da relação com o cliente, de modo a fazer sempre o que for mais útil para seu aprendizado e ser coerente em minha postura.
Tenho procurado suprir cada lacuna que ficou ao longo desses anos, tanto na parte profissional quanto no meu aprimoramento pessoal. Porém, temos que enxergar as questões de forma relacional sistêmica e vejo que retomar os estudos com a Solange aconteceu no momento mais adequado, em que eu poderia bancar abrir mão das historinhas e da acomodação às quais havia me habituado. Ter feito meu mestrado estudando a dinâmica relacional de famílias e suas redes sociais significativas, podendo revisitar clássicos da teoria sistêmica e acrescentando conceitos da teoria relacional sistêmica também foi muito importante para esse resgate.
No entanto, acredito que o nosso maior desafio, não somente como psicólogos, mas principalmente como terapeutas relacionais sistêmicos, é não nos deixarmos enganar por nossas próprias defesas, é não nos deixarmos acomodar nas verdades absolutas que temos a nosso respeito e das relações que vivemos, mas sim optar por não nos enganarmos com nossos próprios enredos sedutores. Logo, coerência, enxergar e ouvir o padrão de funcionamento, atenção e responsabilidade são, a meu ver, os maiores desafios que um terapeuta relacional sistêmico enfrenta em sua prática profissional e na sua vida pessoal.