Resenha de Livro
Curso de Formação em Terapia Relacional Sistêmica
Psicóloga Solange Maria Rosset

 

Nome do Livro:

Aparth/Aids

 

Autor do Livro:

Diversos sob a coordenação de Carmen F. Lent

 

Editora, ano de publicação:

Banco de Horas / 1977

 

Relação dos capítulos

Cap. 1 - Introdução

Cap. 2 - Banco de Horas - RJ

Cap. 3 - Parte do Tempo - PR

Cap. 4 - Saúde mental e Aids

 

Apanhado resumido sobre cada capítulo

Cap. 1 - INTRODUÇÃO

Aparth/aids é o nome através do qual enunciamos uma sutil, porém férrea muralha divisória. Brotada no âmago da teia social, encarnada no fio humano que tece a malha, pretende isolar por trás de suas grades invisíveis a própria existência da epidemia de aids.

Infectada é uma pessoa com a vida marcada pela presença de um vírus de cura ainda desconhecida e produtor de uma nítida discriminação coletiva. Afetado é todo o mundo, assombrado por um fantasma que atravessa o âmago das relações humanas. O HIV, impensável vírus, transita a trama da sociedade. Tinta de contraste, desenha o caminho de nossas vulnerabilidades, responsáveis pela instalação da síndrome. Enraizadas fragilidades - de gênero, de educação e de recursos - junto a fundos temores gerados nos preconceitos, impedem que o avanço da infecção possa ser detido e a epidemia controlada, mesmo não eliminando o vírus.

Para tantos, afastar do convívio a quem é soropositivo e o alijar da consciência a noção do risco, pretendem obrar a mágica de anular o perigo. Só que, feitiço virando contra o feiticeiro, o próprio alheamento - da consciência e da convivência - instala a irresponsabilidade, social e pessoal.

Assim sendo, a ainda crescente epidemia é uma das tantas formas que assume a violência, manifestando-se naquelas circunstâncias em que a vulnerabilidade impera. Neste sentido, o aphart/aids é - tal como toda as violações de direitos, os abusos de qualquer tipo de poder e as diversas formas de discriminação e exclusão - uma das manifestações da violência única: a negação do ser humano pelo ser humano.

O norte que orienta esta publicação é o nosso próprio enfrentamento ao aparth/aids. Certamente a epidemia nos obriga a repensar as características de nossa constituição social de um modo muito mais premente, e criar as iniciativas imprescindíveis. Só as ações que incidam sobre as barreiras já instaladas - terão o efeito desejado para controlar a disseminação, enquanto aguardamos as providências para alcançar a cura.

Cap. 2 - BANCO DE HORAS - RIO DE JANEIRO

A razão de ser do Banco de horas, projeto que consiste em uma ampla rede de profissionais de saúde mental voluntários que oferecem, nos seus consultórios privados, psicoterapia gratuita para pessoas soropositivas, familiares e profissionais de atendimento direto. Destina-se também a iniciativas de prevenção junto à população geral.

A própria existência do Banco de Horas traz à tona a importância da subjetiidade das pessoas infectadas e afetadas pela aids e a possibilidade de atender suas demandas emocionais. Considerar os aspectos emocionais das pessoas comprometidas na epidemia, vem a sublinhar o fato de que as transformações necessárias para o combate se produzem, em última instância, no íntimo de cada indivíduo que alcançou a consciência imprescindível. Consciência que se faz presente também, neste projeto, através de cada profissional que oferece voluntariamente sua colaboração para torná-lo possível.

Cap. 3 - PARTE DO TEMPO - LONDRINA

O Projeto Parte do Tempo surgiu do desejo de atender aos fatores emocionais presentes na epidemia da Aids, inspirado no projeto Banco de Horas / Idac, através da oferta de psicoterapia gratuita nos moldes do atendimento privado. Seu maior objetivo é a criação de um voluntariado de psicólogos clínicos para o atendimento de pessoas vivendo com HIV e Aids. O nome Parte do Tempo foi escolhido para significar o horário que o voluntário oferece em seu consultório.

Através dessa iniciativa objetivamos mobilizar os profissionais de Saúde Mental sobre a importância da interlocução com organizações governamentais e da sociedade civil pra o desenvolvimento de parcerias que amplie a oferta de serviços e a discussão sobre temas relativos a saúde mental no contexto da epidemia de HIV/Aids e no estímulo ao estabelecimento de políticas públicas de assistência e prevenção que possam diminuir o grau de vulnerabilidade ao HIV /Aids e suas conseqüências.

Cap. 4 - SAÚDE MENTAL E AIDS - Carmen F. Lent

Gostaríamos de usar este espaço para trazer a vocês, em primeiro lugar, uma informação sobre um fato recente que achamos importante divulgar aqui pelas possíveis repercussões que possa acarretar, para passar logo em seguida às reflexões sobre aids na clínica que vamos elaborando dentro dos atendimentos e dos Grupos de Estudo do Banco de Horas.

Se há uma coisa que nós todos, profissionais de saúde mental participantes do Banco de Horas, temos em comum, é a noção de que o psiquismo, tanto das pessoas infectadas quanto das afetadas, desempenha um papel fundamental na epidemia de aids. Isto nos parece tão óbvio que constantemente nos surpreende encontrar que esta noção ainda seja incipiente, não só nas políticas oficiais, como dentro de nossa própria classe profissional.

Por solicitação da Comissão Nacional de Aids, elaboramos junto a uma subcomissão convocada a tal efeito, um documento, que denominamos "Saúde Mental e Aids: a incidência da subjetividade", dividido em duas partes. A primeira destinou-se a demonstrar a ampla incidência da epidemia sobre a vida emocional das pessoas, tanto as infectadas quanto as afetadas, a necessidade de fazer intervenções apropriadas e a detalhar as recomendações pertinentes. A segunda parte abordou especificamente a sub-população psiquiátrica, tanto a que se encontra internada em instituições, quanto a dos pacientes com alterações psiquiátricas e neurológicas decorrentes da infecção pelo vírus. Felizmente, a excelente recepção que teve a apresentação do relatório na Comissão Nacional de Aids, deu lugar a inaugurar uma Unidade de Saúde Mental, a partir de agora ligada à rede de Direitos Humanos, dentro do Programa Nacional de DST/AIDS.

Faço estes comentários na intenção de transmitir a idéia de que, ampliar o espectro de atenção à epidemia para além da medicalização e incluir outros aspectos também fundamentais, neste caso os emocionais, é um esforço constante cuja responsabilidade cabe a todos nós. Pensamos que estes avanços, nos espaços oficiais, devem permitir no futuro próximo a existência de outros projetos de intervenção como o do Banco de Horas; pesquisas específicas sobre temas de subjetividade e aids; inclusão explícita do tema em congressos e eventos públicos; treinamento de profissionais de outras áreas, nestas temáticas; publicações pertinentes e etc.

Agora é nossa a responsabilidade, como profissionais do psiquismo, de ocupar este espaço formal alcançado, para desenvolver o tema da subjetividade em relação a aids exista, concreta e especificamente, tanto nas escolas de formação das universidades, quanto nos institutos de especialização posteriores, públicos e privados.

Bem, agora eu queria passar a falar sobre algumas reflexões que vamos elaborando a partir de nossa clínica, a modo de estímulo pra outras produções sobre o tema.

Sabemos que os atendimentos do Banco de Horas tem acesso privilegiado a uma intimidade muito especial: nos brindam a oportunidade de ouvir pessoas infectadas e afetadas pelo HIV nos seus relatos mais íntimos, aqueles entornados na privacidade dos consultórios.

Esta circunstância nos permite construir algumas hipóteses, a saber: a presença da epidemia de aids no planeta tem características históricas únicas e, como fato humano, se apresenta na clínica do psiquismo introduzindo um impacto duplo. Por um lado, coloca em evidência a ausência de conhecimentos prévios sobre o quadro psíquico que virtualmente inaugura. Por outro lado, põe em evidência o compromisso pessoal do terapeuta com o tema de aids, fantasma de todos.

Em relação ao primeiro impacto, nos últimos anos nos deparamos com colegas que, havendo recebido um pedido de consulta por parte de alguma pessoa soropositiva - ou com aids - manifestam seu receio em atender a solicitação por "não saber" como fazer esse atendimento. É evidente que, enquanto profissionais - em exercício - certamente contam com instrumentos que os habilitam para a compreensão e intervenção; mas a falta de precedentes, de uma reflexão sistemática sobre a relação entre aids e psiquismo e de uma produção teórica conseqüente, representam certa orfandade de saber que, para alguns, se traduz em desamparo profissional. Para outros, no entanto, instala um desafio e estimula a procura de respostas.

Em relação ao segundo impacto, sabemos que nada do humano nos é alheio na clínica, e que clinicar implica em estabelecer um vínculo com o paciente que nos afeta das mais diversas maneiras.Sabemos também que visamos estar preparados, teórica e praticamente para lidar com as vicissitudes do impacto que o outro causa em nós. No entanto, o fantasma da aids configurou-se de tal maneira, penetrou - direta ou indiretamente - em áreas tão fundamentais do nosso existir, que ninguém pode em sã consciência deixar de ser habitado por um variado repertório de repercussões do tema. Além do mais, sem contar com o "refúgio" do saber especializado a respeito do mesmo.

Por uma vez - no convívio durante um período de guerra - pacientes e profissionais partilhamos a assombração. E por mais que nossas defesas tentem ludibriar-nos, não temos como sustentar que "a doença é do Outro". Infectados e afetados coexistimos num mesmo território de preocupação, tanto concreto, quanto fantasmático.

Buscamos descobrir se a população atingida pelo HIV apresenta características específicas. Nas supervisões, na escuta dos relatos sobre os pacientes, nas reflexões do grupo de estudos. Conduzimos durante o ano passado a pesquisa que resultou na publicação "Pontes Aids e assistência ". Como o nome indica, objetivamos relacionar os dois lados da assistência. O produto resultante destinava-se principalmente aos profissionais de atendimento direto às pessoas com HIV/aids. Tentamos configurar, com os dados fornecidos pelos terapeutas do Banco, por médicos, advogados e outros profissionais que trabalham com pessoas soropositivas e com elas mesmas, o que seriam as características da subjetividade de uma pessoa infectada.

Comprovamos, no entanto, como costuma acontecer, o que supúnhamos previamente: não encontramos nenhum perfil psicológico que diferencie uma pessoa soropositiva de outra não, portadora do vírus, nem que trace semelhanças das pessoas soropositivas entre si.

A primeira conclusão foi se fazendo unânime: as pessoas soropositivas, a princípio, do ponto de vista psíquico, só tem em comum a singularidade de serem portadoras do vírus HIV.

É possível supor até que a procura de perfis para pessoas soropositivas fosse ainda uma herança das primeiras épocas da epidemia; sucessivamente, acompanhando os primeiros passos de uma construção epidemiológica, passou - se de falar em um "câncer gay" a falar de "grupos de risco ", classificações todas fora de procedência na atualidade, mas que, no início, faziam acreditar num "perfil desenhável", que contemplasse os diferentes indivíduos soropositivos.

A própria infecção tem pouquíssimas regularidades encontráveis em termos de população atingida: o que encontramos atualmente são bebês infectados, crianças adolescentes, jovens adultos e velhos. Mulheres casadas, solteiras, monogâmicas, com parceiros múltiplos, ou profissionais do sexo. Homens, homo e heterossexuais, hemofílicos e usuários de drogas injetáveis... ou não. Esta é a mesma variedade e riqueza de perfis que encontramos no campo psíquico.

A única regularidade é o traumático impacto de se saber portador do vírus, instalando o que podemos chamar de "incerteza radical". Esta incerteza nada é do que saber que não sabemos o que nos espera. Incerteza comum a toda humanidade, mas geralmente omitida na consciência.

Uma pessoa soropositiva, portanto, é alguém que apresenta, do ponto de vista psicoterapêutico, a mesma variedade sintomática que estamos acostumados a encontrar na clínica habitual. Através da contaminação, o status ontológico do sujeito se transformou, passando a ser portador de um vírus transmissível, de um elemento de discriminação social, de uma virtual deterioração física e de uma eventual morte por alguma doença resultante do colapso do sistema imunológico. Isto muda drasticamente as circunstâncias do sujeito, mas não se traduz em uma transformação da sua organização psíquica. Pelo contrário, é esta organização prévia a que "arruma" o novo fato, que é a soropositividade. Nos atendimentos em curso, constatamos constantemente que existe a dupla presença da sintomatologia prévia e organizadora do quadro e do novo estado ontológico, resultante da contaminação. A reação perante a infecção não pode ser outra, não tem como ser outra, que aquela que o desenho prévio do sujeito o leva a ter perante este ou qualquer outro acontecimento.

Isto nos conduz a outra conclusão: há uma especificidade na clinica psíquica de um paciente soropositivo, que consiste na delicada dialética entre o que é ser portador do vírus, por um lado, e o que é da ordem do sintoma, por outro, portanto inespecífico da infecção pelo HIV. O fino equilíbrio entre estas duas características constitui o âmago de trabalho clinico com esta população.

Considerando as temáticas apresentadas nas sessões, queremos também fazer um comentário sobre uma certa idéia preconcebida de que a clinica da aids se centra nos temas da sexualidade e da morte. Ora, isto nos parece uma redundância, posto que pensamos que toda a clinica do psiquismo lida, de uma ou de outra maneira, com a castração e com as vicissitudes da libido. Portanto, novamente não achamos que estes temas sejam específicos dos portadores do vírus. O que nos parece ser comum denominador e bastante específico, é, como eu disse no inicio, a presença incessante do sentimento de incerteza.

Isto nos levou a refletir sobre um curioso isomorfismo que observamos entre o "não saber" da pessoa soropositiva (se e quando irá adoecer, se é melhor tomar determinada medicação ou não, se será encontrada a cura em tempo, e etc.) e o "não saber" dos psicoterapeutas a respeito da aids (como tratar, se há uma especificidade das pessoas soropositivas, ou uma necessidade de tratamento diferenciado, se intervir na realidade externa do paciente ou não, e etc).

O "não saber" é inerente à vida. È também fonte de angústia para o ser humano. Daí, todas as estratégias para evitar o contrato com a ignorância que nos é constitutiva. Mas, no nosso trabalho com o psiquismo, pensamos que só quando finalmente aceitamos esta limitação, podemos fazer da angústia um motor de produção, ou seja, de vida.

A presença constante do "não saber" faz parte inesperável das circunstâncias em que vivem as pessoas soropositivas, tornando-se um protagonista; a partir daí se bifurca, produzindo, ou um incremento das estratégias para eludir a angustia e criando sintomatologias psíquicas, ou um marcado incremento na capacidade vital, na otimização da qualidade de vida. Há relatos registrados, nesse sentido, de pessoas que dizem ter "começado a viver" a partir do diagnóstico da infecção.

Em quanto a nós, profissionais do psiquismo, quando um acontecimento como a epidemia de aids nos recoloca perante um "não saber", apenas traz à memória uma condição permanente.

Não sabemos, de fato, a respeito desse Outro a quem atendemos, temos somente instrumentos para desenvolvermos, juntos, uma compreensão que não existia antes. E freqüentemente, no exercício da profissão e na fuga de nossa própria angústia, confundimos um instrumental clínico um "saber". Lembrar disto, também neste caso, produz uma bifurcação: pode ser paralisante para alguns profissionais, ou um novo estímulo para outros.

 

Apreciação pessoal sobre o livro

Participo como voluntária do "Parte do Tempo". O meu envolvimento no projeto foi algo que fez diferença no ano de 2002. A possibilidade de receber informações sobre o assunto, me fizeram parar para pensar no meu papel como terapeuta, como profissional da área de saúde e como ser humano. Espero que o texto também traga reflexões para outras pessoas

 

Nome do autor da resenha e data: Margareth Alves / Fev. 2003