Resenha de Livro
Curso de Formação em Terapia Relacional Sistêmica
Psicóloga Solange Maria Rosset

 

Nome do Livro:

Canto dos malditos

 

Autor do Livro:

Austregésilo Carrano Bueno

 

Editora, ano de publicação:

Lemos Editorial, 2000

 

Relação dos capítulos

- Capítulo 1:[Vida Pregressa]

- Capítulo 2: [O internamento]

- Capítulo 3: [Vivendo o pesadelo]

- Capítulo 4: [depois]

- Depoimento do pai

- Pós-fácio...Argumentações...Primeira ação indenizatória em saúde mental no Brasil...Resumo histórico dos hospícios brasileiros...Movimento da Luta Antimanicomial...Trabalhos Substitutivos aos hospitais psiquiátricos...O filme...Ufa!

 

Apanhado resumido sobre cada capítulo

Capítulo 1 [Vida Pregressa]

Curitiba, anos 70: um grupo de estudantes do Colégio Estadual do Paraná, entre os quais Austregésilo Carrano BuenoAustry, reunia-se todas as noites nas escadarias do colégio, trocando impressões, vivendo fantasias e traçando e tecendo sonhos. Foto Clic – estúdio fotográfico no centro de Curitiba e propriedade de um dos rapazes do grupo - é a segunda casa da turma. Todas as noites o pessoal reúne-se no foto, conversando e fumando maconha ou ingerindo outras drogas relativamente leves. O grupo é composto por Paulão, Edson, Issan, Austry, Negrão, Suzi, Herbert, Adão, Kátia e Eliane.

Edson propõe e todos aceitam: viagem para Camboriú. Dinheiro em falta, como conseguir carona para todo um bando?  Nada que as meninas não consigam...sabendo como, conseguem carona para elas três e mais os cinco marmanjos.

Acomodam-se em barracas, longe da agitação, mas parece que esta os persegue: logo aprecem alguns malucos para dividir e compartilhar os baseados. Ouve-se barulho de tapas em uma barraca, e a turma acorre para socorrer. O Adão, batendo em si mesmo com um chinelo, queria matar os ratos que estavam em sua cabeça. Enfiou a cabeça em um balde, agüentando o mais que podia. Disse então ter afogado todos os ratos.
Com ou sem maluquices, a turma não descuidava dos estudos. As notas eram regulares, o suficiente para passar sem recuperação. As aulas de arte eram as preferidas de Austry, despertando nele o desejo de ser ator. Após estas aulas, Issan e Austry geralmente iam até o Foto. A mãe de Austry chegou a sugerir que ele fosse morar lá, já que passava tanto tempo ali.

De garoto, Austry era tímido e medroso, uma vez que era muito vigiado pela mãe. Após receber muita bordoada de colegas, reagiu acertando uma pedrada em um menino, o que quase lhe valeu a expulsão do colégio. Este incidente e uma conversa e explicações sobre o mesmo entre a mãe e o diretor, fizeram com que a mãe começasse a dar mais liberdade ao filho.

Solto no mundo, o rapaz começou a ver e desejar coisas fora do alcance de um adolescente pobre. Surgiu a revolta, mas agora, os pais já não podiam controlá-lo. Mas o cuidado com os estudos permaneceu inalterado: sabia que só assim conseguiria sucesso em sua vida.

Surge um convite: viajar para o Rio de Janeiro. Seu amigo tinha uma tia morando lá. O amigo só não disse que o bairro era uma favela, e não sabia que a tia tinha agora um gigolô, que não simpatizou nem um pouco com os dois marmanjos. Sendo inviável permanecerem ali, o amigo sugere que batalhem para ficar no Rio. O tipo de batalha seria a prostituição com homossexuais. Austry disse ao amigo que não faria isso por preço nenhum. Solto na cidade desconhecida e sem dinheiro, acabou dormindo na praia. Acorda percebendo que havia outros hóspedes ali, também despertando. Acaba fazendo amizade com um mulato que puxou conversa. O novo amigo, Rodolfo, que já está na cidade há três meses, ensina como ganhar dinheiro sem precisar se prostituir: “contar um sete” - uma história, como por exemplo, dizer ser de fora e estar precisando de dinheiro para comprar passagem de volta para sua cidade. 

Após vários dias de companheirismo, Rodolfo não aparece mais. Austry acaba arranjando uma namorada, e também, encontra uma conhecida de Curitiba. Acaba namorando duas mulheres ao mesmo tempo. Os três juntos freqüentam principalmente a Avenida Atlântica, local predileto para “batalhar” – pedir dinheiro.

Surge Luiz Carlos, interessado em uma das moças. Convida os três para beberem com ele, e leva-os para seu apartamento, em Catumbi. O trio dorme lá . Austry acorda com a chamada para o café, que o lembra de casa e da necessidade de voltar, pois as aulas recomeçam em seguida.
A volta dos três para a rua foi breve: ocorre uma batida policial e nenhum deles consegue encontrar a carteira de identidade. Sorte grande foi não estarem portando nenhuma droga neste momento, mas acabam presos por vadiagem. Na cela, Austry se mete em discussão. O resultado desta foi um banho com água fétida e mais tempo encarcerado. As meninas saem em dois dias; Austry, quatro. Saindo dali, ele rumou direto para a rodoviária, para voltar para Curitiba.

A mesma rotina anterior recomeça, mas Austry sente-se diferente. Percebe-se autoconfiante.

Nova ida a Camboriú acontece. Na volta, Austry oferece droga a uma moça que o delata e aos companheiros também. Chegando na Rodoferroviária, são revistados pela polícia e sentem medo, porque havia sobrado um pouco de fumo. Edson, no entanto, havia sido esperto, conseguindo esconder o cigarro. São encaminhados para um policial com fama de torturador. Este pergunta onde fica o Foto e diz estar faz tempo de olho na turma. Austry acredita que o policial deu o aviso porque dois dos rapazes do grupo, como o policial, eram japoneses. Por um longo período a turma deixou de se encontrar lá.

Capítulo 2  [O internamento]

Outubro de 1974: o pai convida Austry para irem visitar um amigo no hospital. Austry estranhou o convite, mas foi. Chegando, imediatamente é cercado por dois enfermeiros, que pegam em seus braços. Assustado, Austry pergunta ao pai o que está acontecendo. Ele responde que é para o seu próprio bem. Um dos enfermeiros explica que fará alguns exames. Austry diz que não está doente. Entra em um pavilhão e a porta fecha-se atrás dele. O pai ficou fora. O enfermeiro diz que o pai encontrou maconha no bolso da sua jaqueta, e, achando que ele é viciado, encaminhou-o para tratamento.

Levado à enfermaria, é sedado e só acorda no dia seguinte pela manhã. Toma café e é o último a levantar da mesa. Um enfermeiro manda-o sair para um pátio. Ali havia outros internos, que não tinham estado no refeitório. Pareciam mendigos maltrapilhos, isolados dos outros num canto do pátio, onde havia um pequeno telhado. A impressão que Austry teve foi a de um cenário de filme de terror. Alguns estavam com as calças molhadas e sujas, provavelmente de urina e fezes, apresentavam comportamento estranho, formando um quadro triste. Nas palavras do autor: “Aquilo era satânico: pessoas urinadas, defecadas, revirando os olhos, cabeças, querendo entrar dentro do concreto. Todo aquele tormento só podia ser comparado ao inferno. Se ele realmente existe, sem dúvidas eu estava vendo um pedacinho dele, ali naquele canto – o canto dos malditos...” (p. 38). Tomado pela angústia, dirige-se ao enfermeiro sentado junto à porta. Quer falar com o médico, explicar que não é dependente químico. Descobre que é praticamente impossível falar com o psiquiatra. Com a família só poderá falar após quinze dias. O enfermeiro diz que o pai já passou ao médico todas informações necessárias. Frustrado, dirige-se a um interno – Rogério, puxando conversa. Conversa sobre possibilidades de fuga do hospital, mas Rogério logo faz com que desista da idéia, explicando a impossibilidade da fuga, e falando que aos internos exaltados é dada uma injeção de Haloperidol, que os deixa sem qualquer capacidade de ação física.

Falando sobre o médico, Rogério diz que este é o maior sádico que já conheceu. Explica a Austry que a consulta com o médico foi o breve cumprimento trocado no pátio e que o tratamento e medicação são baseados na ficha.

Rogério é dependente de cocaína, e concorda com Austry que a maconha não vicia ninguém. Conversam sobre como deveria ser uma campanha eficaz no combate às drogas, até ouvirem a chamada do enfermeiro para a distribuição dos medicamentos.

Após o almoço, um enfermeiro, Marcelo, vem ao quarto conversar. Austry fala sobre o que o preocupa. Fica sabendo que na sua ficha consta que quebrava tudo em casa, o que não é verdade: quando os pais se opunham às suas saídas, chutava seu guarda-roupa e jogava coisas suas no chão. Dá-se conta de que, somando isso com o encontro da maconha em sua jaqueta, os pais concluíram que era viciado. Não entenderam que sua revolta nestes momentos era simplesmente uma revolta típica da adolescência. Austry pede a Marcelo que fale com o médico, mas este explica que não pode fazer isso. Explica também que não é preciso se preocupar, pois ninguém lhe fará mal dentro do hospital.

Sentado no pátio, Austry joga fora um cigarro que tinha terminado de fumar.Dois pacientes crônicos que o observavam pulam rapidamente para disputar a xepa. Agridem-se com tapas e mordidas. A disputa encerra-se quando o vitorioso coloca o toco na boca. Ao perdedor Austry oferece um cigarro. Imediatamente é cercado por outros pacientes que também querem cigarros. Oferece mais alguns e sai dali. Mais tarde a cena se repete com outro cigarro que termina de fumar. Reflete que seria um grande ato de caridade proporcionar cigarros a estas pessoas,  para que pudessem conservar, no mínimo, um grau um pouco maior de dignidade.

Em conversa com Rogério, este pergunta a Austry se já havia contado quantos comprimidos tinha tomado naquele dia, e cospe fora os que ele havia recebido. Explica os medicamentos provocam impregnação, reduzindo a vontade própria dos internos. Vendo Austry mesmo assim tomar os comprimidos, comenta que não adianta querer ajudá-lo.

Austry fica sabendo que o pavilhão no qual se encontra tem a finalidade de fazer a triagem dos pacientes que chegam, e também, desintoxicação e aplicação de eletro-choques. Os pacientes são depois encaminhados para outras unidades dentro do hospital. Rogério explica que o tratamento para alcoolistas funciona bem, mas, o tratamento dado aos drogadidos é criminoso.

Chega o dia das visitas, quinta-feira. Os esquecidos, sempre em situação precária, sem higiene e sem cuidados que valorizem sua condição humana, são mantidos longe dos olhos dos visitantes. Austry resolve conhecer o lado onde ficam seus quartos. Não consegue chegar nem até a metade do corredor. O cheiro de fezes é insuportável. Olha o interior de um dos quartos. O desmazelo é total. Na parede há marcas de mãos e de dedos escorridos de fezes. O cheiro provoca ânsia de vômito. Não consegue ir adiante. Vai ao banheiro lavar mãos e rosto, e chora um pouco.

Para a recepção dos visitantes há cuidado com os mínimos detalhes. O autor descreve: “O espetáculo parecia a estréia de peça de teatro (...) O grande cenário era lá fora” (p. 59). O acesso ao interior é proibido aos visitantes. As chances de que um interno possa realmente ser ouvido pelos familiares é praticamente inexistente, pois tanta beleza e tranqüilidade impressionam muito aos familiares. O comportamento dos enfermeiros muda: o autoritarismo e gritos dão lugar à dedicação, gentileza e a uma fala mansa.

O almoço dos internos neste dia é especial, e todos aqueles que têm visita estão limpos e arrumados. Mesmo entre os internos o estado de espírito muda, pois além do fato de receberem visitas, há esperança de conseguir que a família peça sua alta. Os pacientes crônicos conseguem, diante de tanta boa vontade, algum cigarro extra. A espera é inquietante. Quando chamados para irem ter coma família, a angústia dá lugar a um largo sorriso.

Às dezessete horas encerra-se o horário de visitas. Voltam para dentro do pavilhão os que receberam visitas. Mãos carregando frutas, doces e cigarros, mas, muitos têm o olhar frustrado. “As reclamações pelos maus tratos, pelo isolamento, pelos choques, pelos remédios, pelos crônicos cagados ao seu redor...Quando iriam tirá-los dali? Tudo que era reclamado deixava de ter importância. O que realmente importa [para a família] ,,,é que ele está fazendo tratamento” (p. 59).

Retorno da rotina, apenas observa-se que alguns comem menos, já bem alimentados com as guloseimas recebidas. Após o jantar, um pouco de televisão até às 21:00 horas, para última rodada de medicamentos. Cada qual é trancado em seu quarto. Em caso de necessidade podem bater à porta para serem atendidos pelo enfermeiro plantonista.

Capítulo 3  [Vivendo o pesadelo]

O dia começou diferente: o enfermeiro da noite abriu o quarto e esperou Austry se vestir. Levou-o para um outro quarto e quando foi fechar a porta, Austry perguntou o porquê de ficar ali. O enfermeiro respondeu que o médico viria falar com ele. Um pensamento passou pela cabeça de Austry, que se sentiu aterrorizado: os choques. Tremia e quase não conseguia respirar.

Pela janelinha da porta, perguntou a um companheiro que viu passando, o que iria acontecer. Ele respondeu que deveria receber choque, mas que não doía. A outro que passou, Austry perguntou pelo Rogério. Também deveria receber choque. Eram 6:40 horas, a aplicação deveria ocorrer por volta das 10:00. Austry sentia-se como um condenado à cadeira elétrica.

De início, o tempo passava rápido, mas, chegando perto da hora, cada minuto durava uma eternidade. Do medo surgiu a raiva. Escutou Rogério pedindo que pelo amor de Deus o doutor não fizesse aquilo com ele. Rogério chorava e se debatia, tentado escapar. Pego à força, só se ouviu um gemido. Austry escutou então o barulho de rodinhas. Chegara a sua vez. Não conseguia parar de tremer, o coração quase saindo pela boca. Também quase não conseguia se manter em pé. Foi conduzido para a cama por Marcelo, o enfermeiro. O médico, com um tubo em cada mão, sorriu. Marcelo ajeitou seu corpo, e outro enfermeiro colocou um dos tubos em sua boca. Austry só escutou parte de seu gemido: desfaleceu.

Acordou todo babado, com muitas dores, pensamentos confusos, descontrolados. Não conseguia sair da cama. Chegou um enfermeiro e o ajudou. Não conseguia alimentar-se e o corpo todo doía muito. Não havia posição em que não sentisse dor. Tentando comer algo, até os dentes doíam e vomitou tudo que havia comido. Só à noite conseguiu comer alguma coisa sem vomitar.

No pátio, sentado num canto sozinho, Rogério foi procurá-lo. Austry começou a chorar e Rogério percebeu que ele preferia ficar só. Austry chorava de revolta. Sentia-se violentado. No dia seguinte conversaram. Comentaram que os pacientes crônicos provavelmente chegaram a um grau tão alto de degradação devido ao tratamento com choques e medicamentos. O enfermeiro Marcelo foi conversar com eles. Chefe do pavilhão, tratava os internos com carinho, sem deixar de ser firme quando necessário. Conversaram sobre as recaídas constantes de Rogério. Quando Marcelo saiu, Austry veio a saber que os amigos traziam drogas para Rogério.

Domingo era dia de festa: vinham visitas. Quem recebia visitas tomava banho. Não os crônicos: para estes, o banho acontecia só uma vez por mês, e faziam todo o possível para escapar. No mais, repetia-se o ritual das quintas-feiras, também dia de visitas. Os pacientes tinham esperança de ouvir a data de sair dali. Comportavam-se exemplarmente para provar que estavam sãos, prontos para partir. Quando saíam as visitas, predominavam frustração e tristeza pelo confinamento e isolamento. Austry definiu a falta de ter o que fazer como uma das maiores dificuldades dali.
A véspera da aplicação dos choques era terrível: a angústia era imensa. Dormir tornava-se difícil. As seqüelas das aplicações acompanharam Austry por muitos e muitos anos. Na sala das aplicações o pavor era imenso. Austry pôs-se a lamber o chão, fazendo promessas a Nossa Senhora para que o livrasse do que estava por vir. Entraram o administrador e o enfermeiro. Descontrolado, Austry empurrou o administrador e tentou levantar-se da cama. Foi imobilizado pelo enfermeiro. Reprise do choque anterior: dores fortes, enjôos, sentimento de ter sido violentado.

No dia anterior ao choque seguinte, Austry e Rogério pediram para ficar juntos no mesmo quarto durante a aplicação. A contragosto, o enfermeiro permitiu. Juntos, a angústia tornou-se menor. Rogério pediu para ser o primeiro, pois era sua última aplicação e temia reagir no caso de ver a aplicação sendo feita no amigo. Austry tinha várias aplicações pela frente: deveriam ser doze no total. Austry assistiu à aplicação feita em Rogério, e saiu em disparada. Foi pego por um dos enfermeiros e levado à força para a aplicação do choque.

Sábado era dia de esperança: domingo vinham os familiares, e acreditava que contando aos pais o que se passava, eles iriam tirá-lo dali. Também era o dia em que recebiam passe espiritual, pelo Sr. Abib. Ele era esperado ansiosamente, talvez pela necessidade que os internos tinham de contato com gente de fora.

Recebendo a família, Austry pediu que o tirassem dali imediatamente. Só conseguiu, no entanto, a promessa do pai de que pediria que não aplicassem mais os choques. Quando levado à sala das aplicações, foi tranqüilo, acreditando na promessa do pai, mas acabou sendo novamente submetido ao eletrochoque. No dia seguinte, mal-humorado, irritado e querendo brigar, recebeu uma injeção. Logo em seguida, começou a reação: tudo em seu corpo se contorcia. Foi tentar falar com o plantonista, que olhou para ele e riu do seu estado.

Os dias se seguiam, e Austry foi ficando cada vez mais sedado. As aplicações de eletrochoques não pararam. Já não conseguia mais abotoar sua roupa, e tornava-se cada vez mais indiferente. A mãe não o visitava mais, pois não suportava vê-lo naquele estado. A família assustou-se com o autômato em que Austry havia se transformado. As visitas começaram a desagradá-lo, sentia medo de estranhos. O que quer que lhe pedissem, fazia. Desesperada, a família pressionou o médico, que prometeu melhoras, mas não as obtinha. Contra sua vontade, o médico concedeu alta.

CAPÍTULO 4 [Depois]

Voltando para casa, o que Austry queria era isolar-se. Não queria ver ninguém. A família insistia em querer tirá-lo do quarto, mas ele tinha medo das pessoas. Transcorridos dois meses, a família se reuniu para resolver o que poderia ser feito. Como Austry pedia constantemente para voltar ao hospital, perguntam-lhe se era o que realmente queria. Ele confirmou. Sentia que lá era o seu lugar: Não havia ali cobranças, nem críticas.

Entre os crônicos, sentia-se bem. Compreendia-os agora: eles não se sofriam mais, e ele também não queria mais sofrer. Recomeçaram as sessões de eletrochoques, agora usadas para trazê-lo de volta para a realidade. Para ele era indiferente.

Aos poucos, começou a ocorrer uma guerra interna: uma parte de Austry chamava-o para a realidade, e outra, queira continuar flutuando, anestesiada. Devagarzinho, começava a ter sentimentos novamente. Passados oito meses, a família resolveu tirá-lo do hospital. Amedrontado nos primeiros dias, Austry resolveu então sair, ver gente. Os antigos amigos aceitaram-no com reservas: ele estava mudado. Afastou-se deles então.

Por sugestão da família, procurou emprego e começou a trabalhar. O treinamento para vender seguros foi difícil. A psicóloga responsável pelo treinamento percebeu que ele tinha dificuldades e procurou aproximar-se. Austry tinha receio de se expor, e não se importava muito em ser ou não aprovado. Entregou a prova em branco, e a psicóloga tentou saber o que estava acontecendo. Austry respondeu que não estava passando bem, e a psicóloga o aprovou para o trabalho.

Crises de ausência dificultavam que Austry fosse bem sucedido nas vendas. Surgiram reclamações, mas a psicóloga garantia sua permanência no emprego. Os colegas de trabalho o evitavam pelo retraimento e agressividade.

Começou a namorar, mas quando foram a um motel, não conseguiu ereção. Frustrado, tornou-se ainda mais agressivo. Sua mente estava muito confusa. Em casa batia com a cabeça na parede. Os familiares o acudiam. Voltando certo dia do trabalho, começou a bater a cabeça em um poste. Transeuntes acudiram-no e o levaram para casa.

Por sugestão da psicóloga, um colega convidou-o para tomarem um café, e, com jeito, fez com que Austry falasse sobre o internamento e sua situação. O colega sugeriu que participasse da novena da Igreja do Perpétuo Socorro, e sempre cobrava isso, até que Austry foi lá. Saiu sentindo-se melhor, e a cada semana sentia-se mais calmo. A este respeito  cita Niels Bohr: “... também devemos considerar leis de uma espécie totalmente diferente” (p. 100).

Austry passou a sentir-se capaz. Foi trabalhar com venda de seguros, e tudo corria bem. Começou a participar de um curso de teatro, e, elogiado por professores e colegas, empolgou-se. Soube que tinha um parente, ator conhecido e respeitado, no Rio de Janeiro e resolveu mudar para lá.

O contato com o parente não o ajudou em nada. Precisando de dinheiro para permanecer no Rio de Janeiro, arranjou um emprego, e logo mais, outro, na Golden Cross. Estava bem. Passava muito tempo em uma discoteca, onde, certa noite, meteu-se em uma briga. Todos os envolvidos acabaram indo para a delegacia. Na cela, começou a gritar um monte de besteiras, e que era ex-paciente psiquiátrico. Acabou sendo levado para uma clínica psiquiátrica – Hospital Pinel. Para sua surpresa, foi chamado para falar com o psiquiatra. Contou a ele sobre seu internamento anterior. Ele surpreendeu-se em saber que ainda usavam eletrochoques. Outra surpresa, mais que agradável, foi encontrar estagiárias de psicologia. Elas realizavam várias atividades com os pacientes, diminuindo a depressão produzida pelo ócio. O Pinel era um hospital privilegiado, mas havia dois senões: a higiene na cozinha era precária, e muitos enfermeiros eram impacientes e agressivos.

Passados quinze dias, o pai veio buscá-lo. Tendo recebido pouco antes uma injeção, assustou o pai e o motorista do táxi pelas contorções que seu corpo começou a apresentar. Voltaram ao Pinel para que Austry fosse medicado.

De volta a Curitiba, Austry estava agressivo. Era constantemente preso por envolvimento em brigas. Uma delas foi para defender um amigo policial que estava sendo desrespeitado. O agressor era um policial à paisana, e Austry foi preso. Apanhou muito, e para evitar mais agressões no dia seguinte, espalhou fezes suas pelo corpo. Acabou sendo levado para o Hospital Psiquiátrico San Julian. Seu pai já havia tentado interná-lo no Hospital Pinheiros, e o havia internado no Hospital Glória, do qual Austry fugira, de modo que não havia esperança de que o pai o tirasse dali.

No San Julian, após um banho, recebeu uma injeção que o fez dormir até o dia seguinte. A primeira preocupação foi em relação à possibilidade de receber mais eletrochoques. Saindo do quarto, avistou uma fila de pessoas à qual se dirigiu. Perguntou a um homem da fila se recebiam choques ali. Ele respondeu que não. Achando que o homem talvez não soubesse do que se tratava, perguntou para outra pessoa - Orlando, que confirmou a resposta anterior. Em contato com o psiquiatra, seu diagnóstico foi feito em cinco minutos. Havia ali dois psiquiatras, que se revezavam a cada dia, no atendimento de 80 pacientes.

Durante bom tempo Austry não ingeria a medicação que lhe era dada, até ser descoberto. Os enfermeiros então passavam o dedo na sua boca para saber se realmente havia engolido os comprimidos.

Escreveu um diário enquanto internado ali, no qual se pode perceber o grau de sedação pela caligrafia. Conservava-o escondido entre suas roupas, com medo de que o pegassem.

Além da sedação, surgiu outro problema: pela dificuldade em encontrar uma veia para as injeções, uma destas injeções foi aplicada muito rapidamente. O braço inchou e começou a doer muito. À noite chamou os enfermeiros, e como estes não vinham, começou a fazer barulho com um pedaço de madeira do guarda-roupa. Acabou quebrando quase tudo o que havia no quarto. Acabou sendo levado ao cubículo, onde os pacientes eram deixados de castigo. Permaneceu lá durante quatro dias, sendo levado em seguida para uma das enfermarias. Nestas, a saída para o pátio não era livre: só era permitida em determinados horários. A limpeza era feita pelas faxineiras, jogando creolina pela manhã, mas por volta das onze horas, o cheiro já era insuportável. Quando algum enfermeiro passava e via que o pessoal não estava agüentando o cheiro, pedia para a faxineira jogar um pouco mais de creolina, o que era feito de má vontade.

Epidemias de piolhos e muquiranas eram comuns. Quando ocorriam, os pacientes que não eram crônicos, em seu próprio benefício – não por caridade – uniam-se para tratar e limpar os crônicos, para que as condições não piorassem ainda mais.

Os pacientes formavam grupos, organizando-se em gangues, por questão de segurança. Quando conseguiam um pouco de maconha, os mais próximos eram convidados para desfrutá-la. O mesmo acontecia quando conseguiam bebida. Austry e Orlando eram convidados quando havia maconha e quando havia bebida também. Os dois fizeram um pacto: cortariam os pulsos se na visita seguinte a família não os tirasse do hospital. Orlando conseguiu uma gilete. Austry não teve coragem, mas Orlando cortou o pulso. Austry saiu gritando por ajuda, mas quando os enfermeiros chegaram, Orlando já tinha cortado o outro pulso também. Foi levado por dois dias a um hospital clínico.

Nas enfermarias não havia fechaduras. Às vezes os pacientes acordavam à noite com os gritos de alguém que estava apanhando. Trancavam a porta como podiam. Fora do hospital, Austry continua acordando ao mais leve barulho de alguém mexendo em portas.

Um dos pacientes crônicos começou a fazer greve de fome. Os enfermeiros não tinham paciência para fazê-lo comer. Austry e Orlando começaram a conversar com ele e a fazer promessas para que comesse alguma coisa. Continuaram cuidando dele. A solidariedade da ala foi total: todos davam para ele um pouco do que tinham recebido. A mudança deste paciente foi grande. Os remédios nunca teriam obtido este resultado. Austry escreve que o uso das drogas químicas no hospital era um jogo puramente comercial, e os pacientes significavam apenas lucro no fim do mês.

No dia em que fez 20 anos, Austry chorou um pouco sentado em sua cama, mas, sentir autopiedade não era do seu feitio. Saiu pelo corredor afora, querendo brigar com alguém, o que não foi difícil de conseguir. O resultado foi acabar indo mais uma vez para o cubículo. Como era muito rebelde, não sabiam mais que castigo aplicar. Sedavam-no ao máximo, para tentar controlá-lo. Mesmo sedado, conseguia aprontar.

Uma das enfermeiras simpatizava com ele. Preso no cubículo, ela levava cigarros. Certo dia deixou também uma caixa de fósforos. Preso ali já por cinco dias resolveu colocar fogo. Deixou a espuma junto com o colchão que havia estraçalhado, e ficou puxando a descarga enquanto colocava fogo.  Quase morreu queimado, mas disse que foi seu passaporte para a liberdade. Naquela mesma semana os pais o tiraram do hospital.

Depoimento de um pai

Mostrando a um amigo policial um pacotinho encontrado entre as coisas de seu filho, este amigo explicou que aquilo era maconha. Iss, e mais alguns comentários sobre o comportamento do filho, levaram a família a internar Austry, de acordo com o conselho dado por este amigo.

Devido às queixas apresentadas pelo filho, apenas uma vez o pai conseguiu, e apenas após muita insistência, falar com o médico, durante todo um ano de internamento. A conversa não passou de poucos minutos. O contato era sempre feito com o encarregado, que era também o administrador do hospital.

Os familiares percebiam que Austry estava cada vez mais sedado, sofriam com isso, mas achavam que ele tinha que se livrar do vício da maconha. Os parentes se afastaram, a mãe adoeceu, e Austry a cada visita estava mais distante e desligado.

Resolveram, contra a indicação do médico, tirá-lo de lá. Mas em casa, Austry buscava isolar-se, escondendo-se no quarto. Foi novamente internado, e após alguns meses, começou a raciocinar melhor. Quando saiu do Hospital, o desejo do pai era processar o médico – Dr. Alô Guimarães.
À medida que o filho melhorava, tornava-se mais agressivo e descontrolado. Após envolvimento dele com a polícia, o pai resolveu interná-lo no Hospital San Julian. Longe de melhorar, Austry muitas vezes não podia receber visitas por estar de castigo. As promessas do psiquiatra se repetiam, mas, sem que houvesse melhora do quadro.

Ateando fogo ao cubículo onde estava, Austry quase morreu queimado. O pai acordou então para o que vinha fazendo ao seu filho, mantendo-o em instituições psiquiátricas. Jurou que se fosse para o filho morrer, não morreria dentro de uma instituição de tortura destas, “que ‘dizem tratar’ de pessoas de condições financeiras inferiores” (p. 134). Foi o período mais negro da vida do pai.

PÓS-FÁCIO...ARGUMENTAÇÕES...PRIMEIRA AÇÃO INDENIZATÓRIA EM SAÚDE MENTAL NO BRASIL...RESUMO HISTÓRICO DOS HOSPÍCIOS BRASILEIROS...MOVIMENTO DA LUTA ANTIMANICOMIAL...TRABALHOS SUBSTITUTIVOS AOS HOSPITAIS PSIQUIÁTRICOS...O FILME...UFA!

Recém editado, em 1990, pela Editora da UFPR, o livro – O Canto dos Malditos - foi retirado das livrarias a pedido da família do Dr. Alô Guimarães. Após protestos do autor, a UFPR decidiu em assembléia que a responsabilidade pelo conteúdo era do autor, e colocou o livro novamente nas livrarias.
Diante de todas as dificuldades, o autor optou por mudar para São Paulo. Lá conheceu o Movimento da Luta Antimanicomial, descobrindo ter um aliado ali.

Primeira ação indenizatória em saúde mental no Brasil

O autor explica ter sido o primeiro a entrar com uma ação indenizatória por erro médico-psiquiátrico na história forense nacional. Processa a Federação Espírita do Paraná, proprietária do Hospital Espírita de Psiquiatria Bom Retiro. Processa também o Hospital de Neuropsiquiatria do Paraná, o San Julian, e ainda, dois psiquiatras: Dr Alô Guimarães e Dr. Alexandre Sech. Relata como o juiz declarou a prescrição da causa e como a família do Dr Alô Guimarães pediu a cassação do livro. Explica como a lei determina novo tempo para prescrição de uma causa.

O Movimento Antimanicomial e 17 entidades de direitos humanos manifestaram indignação pela decisão do juiz Guilherme Luiz Gomes em declarar a prescrição da ação. O autor conclama todos aqueles que tiverem sofrido abusos em hospitais psiquiátricos para que entrem com pedido de indenização.

Em decorrência dos eletrochoques, a base craniana do autor apresenta uma fissura, como se tivesse fraturado o crânio, seqüela comum em pacientes submetidos a várias aplicações de eletrochoques. Sua saúde física e mental foi prejudicada, por ter sido altamente drogado e sedado. As conseqüências foram a perda do controle dos esfíncteres durante vários anos, e perda de mais da metade dos dentes. Além das perdas já citadas, o autor apresenta ainda problemas de coluna, pesadelos constantes e fortes dores de cabeça. Em relação à formação profissional também houve prejuízo, pois o autor levou nove anos após o último internamento para se recuperar das seqüelas. 

 Na avaliação do autor, dez anos após o lançamento do livro, os objetivos básicos ainda não foram alcançados: a humanização do tratamento psiquiátrico no Brasil ainda não se concretizou, bem como, vários professores das áreas de psiquiatria, psicologia e da saúde mental encontram-se estagnados e passam  aos alunos a idéia de que os hospitais psiquiátricos são um mal necessário.

Resumo histórico de nossas instituições psiquiátricas

O autor recomenda o livro “Psiquiatria Infantil Brasileira – Um Esboço Histórico”, de F. B. Assumpção Jr., para que se tenha uma idéia da expansão das instituições psiquiátricas no Brasil. Explica que estes hospitais passaram a ser uma excelente fonte de renda. Após o golpe militar de 1964, o número de hospitais psiquiátricos particulares mais do que triplicou em um espaço de sete anos. Para hospitais que aceitassem internar presos políticos, homossexuais e outras classes minoritárias, havia incentivos fiscais mais do que tentadores.

Em 1981, com novas construções, havia 430 hospitais psiquiátricos no país, com mais de 600 mil internações por ano. As despesas destas instituições ultrapassavam em muito a cifra de 1 bilhão de dólares ao ano, somente na Previdência Social.

Comparado pelo autor com o holocausto, o sistema manicomial brasileiro deve ter produzido mais vítimas. O Movimento da Luta Antimanicomial, em 1998, apresentou denúncia contra o Hospital Psiquiátrico Juqueri, em São Paulo, onde foram encontradas mais de 30.000 covas clandestinas, algumas contendo mais de dez corpos. Outro hospital visitado pela entidade apresentava um quadro terrível, com uma das unidades sem condições mínimas de higiene e cuidados para com seus pacientes. A visita foi documentada pela TV Bandeirantes, mas nada mudou no hospital, apesar das denúncias.

As instituições psiquiátricas particulares cobram preços extorsivos, que vão de 150 a 600 Reais por dia de internamento. Segundo o autor, os proprietários destas instituições são filiados à Federação Brasileira de Hospitais e financiam campanhas políticas e mantêm compromissos com políticos. São contra a reforma psiquiátrica aprovada pelo Senado. O autor observa que nós brasileiros somos omissos diante desta realidade, e, sendo omissos, somos coniventes.

Movimento da Luta Antimanicomial

O Movimento da Luta Antimanicomial tem mais de 50 anos de existência no mundo todo. Como todo movimento popular, luta pelos direitos do cidadão. Interrompido pela Ditadura Militar, recomeçou no Brasil em 1986, com uma reunião de profissionais da saúde mental, revoltados pelo que viam no Hospital Psiquiátrico Anchieta, em Santos.

O que ocorria neste hospital acontecia igualmente em muitas outras instituições psiquiátricas do país. O Hospital Juqueri, por volta de 1970, tinha muitas vezes mais de 18 mil pacientes. Sua capacidade era para 2.800 leitos. Os pacientes dormiam em pé, nos pátios e ao relento.

Um dos objetivos do Movimento da Luta Antimanicomial é tornar públicos estes crimes psiquiátricos que ainda vêm acontecendo. O maior obstáculo é o desinteresse e a omissão do povo, que só se mobiliza quando o problema o atinge pessoalmente.

Ministrando palestras em vários cursos de psicologia, o autor vê como revoltantes a alienação e omissão destes futuros profissionais para com o sofrimento dos pacientes internados em hospitais psiquiátricos. Sugere que os alunos exijam seus direitos, cobrando a competência dos seus professores.

Trabalhos substitutivos aos hospitais psiquiátricos

Sendo já uma lei, os trabalhos substitutivos aos hospitais psiquiátricos podem ser exigidos pelos brasileiros. Estes trabalhos têm todo o apoio da OMS (Organização Mundial de Saúde). Funcionam em São Paulo há mais de 10 anos, com atendimento gratuito. O custo ao governo é 50% mais barato do que aquele de um internamento.

a) Internação em hospitais gerais apenas em caso de crise do paciente

A internação ocorre apenas em duas situações: quando há risco de vida para o paciente ou para terceiros. A pessoa permanece internada apenas enquanto durar a crise. O internamento é feito em hospital geral porque dali o indivíduo não sai rotulado como louco.

b) Hospital Dia e Noite, Naps, Caps

Nos Naps e Caps (Núcleos e Centros de Atendimento Psicossocial) existem em torno de 6 a 10 leitos para internamento de clientela em crise, sendo o atendimento mais aconchegante e informal do que aquele que ocorre em hospitais. Nos Hospitais Dia e Noite os pacientes permanecem no local apenas durante o dia. Existem equipes interprofissionais, e atividades de terapia ocupacional e de socialização. A equipe opina e acompanha a prescrição da medicação juntamente com o psiquiatra. Sobre os Naps e Caps o autor escreve: “É muito linda a convivência dos pacientes dentro dos Naps, Caps. É emocionante a consciência de cidadania e de direitos sociais passada para eles. Daí a razão pela qual 80% dos pacientes aproximadamente, recuperam-se” (p. 155).

Para evitar que este trabalho seja prejudicado por mudanças políticas, o Movimento da Luta Antimanicomial vem estudando uma Lei Orgânica que garanta a continuidade de trabalhos de cunho social.

c) Centros de Convivência e Cooperativas

Funcionam em uma sala na qual uma equipe visa ao resgate e socialização do paciente e ao atendimento da população dos arredores. Neste espaço podem também ser comercializados produtos feitos pelos pacientes em atividades de terapia ocupacional. O custo é mínimo e os benefícios podem ser imensos.

d) Atendimento psiquiátrico e psicológico em postos de saúde

A idéia neste tipo de atendimento é aproximar profissionais da saúde mental, pacientes e população de modo geral.

e) Lares abrigados e casas protegidas

Na realidade brasileira existem muitos pacientes abandonados pelas suas famílias nos hospitais psiquiátricos. É para estes pacientes que estes lares existem. São casas alugadas pelo SUS, nas quais moram de 5 a 10 pacientes. Diariamente são feitas visitas por um membro da equipe interprofissional que os atende. Há acesso a todos os trabalhos substitutivos.Os custos são aproximadamente 50% mais baixos que os custos nos hospitais psiquiátricos.

De acordo com o autor, se o SUS investisse nos trabalho substitutivos a metade do que gastou no ano passado com instituições psiquiátricas – 490 milhões de reais “... teríamos, nos grandes centros e em até pequenos municípios do Brasil, um atendimento em saúde mental de fazer inveja a qualquer país do primeiro mundo” (p. 158). Para que isso se realizasse, seria preciso que as comunidades se organizassem e exigissem dos prefeitos o cumprimento da lei, e, das secretarias municipais de saúde, os trabalhos substitutivos. Eles têm a verba do Governo Federal destinada à Reforma Psiquiátrica, que muitas vezes é repassada para os donos de hospitais psiquiátricos, que bancam sua campanha eleitoral.

Com a metade do que é investido em hospitais psiquiátricos podemos “... ter um sistema humano de atendimento aos portadores de sofrimento mental,  deficientes físicos, drogados, alcoólatras e a qualquer outro paciente que se encontre em dificuldade, que necessite de ajuda profissional, de solidariedade” (p. 159); e poderiam ser contratados bons profissionais, com salário digno, dando o melhor de si mesmos.

Em São Paulo existe um Caps que funciona como cooperativa com excelente resultado. A integração dos pacientes com a comunidade ocorre com muita naturalidade e afinidade. Os pacientes têm direito a passes de ônibus e metrô; existem leis para o uso de uma carteira de identificação que também dá direito a ingresso em cinemas e teatro.

Não ocorre integração dos egressos de hospitais psiquiátricos com a comunidade. Com também acontece com os presos do sistema penitenciário, ocorre uma institucionalização da pessoa. Ao sair da instituição, o indivíduo não sabe a quem recorrer e quem poderá sociabilizá-lo novamente. O autor descreve  as seqüelas apresentadas por quem sai do hospital psiquiátrico, inclusive por ele próprio: aspecto emocional fragilizado, insegurança para lidar com a vida fora da instituição e insegurança para lidar com cobranças dos familiares que também não estão preparados para lidar com a situação.

No Paraná existe o Projeto de Lei No. 11189/95, que já é lei estadual, relativo aos “trabalhos substitutivos”, mas infelizmente a lei não saiu do papel. O autor aponta a omissão e desinteresse da sociedade paranaense para com esta questão. Curitiba é a cidade que detém o maior número de hospitais psiquiátricos do país, de acordo com dados do Ministério da Saúde. Existe na região metropolitana de Curitiba um hospital que coloca anúncio comercial para internamento de pessoas com problemas de bebida. Segundo o autor, um internamento em torno de quatro dias para desintoxicação seria o suficiente. A continuação de tratamento poderia ser feita com um psicólogo indicado pelo médico clínico.

Os membros do Movimento de Luta Antimanicomial têm certeza de que com os trabalhos substitutivos os hospitais psiquiátricos serão extintos. É apenas uma questão de tempo, mas este tempo significa vidas e muito dinheiro que poderia ser aplicado nos trabalhos substitutivos.

O autor revela que em Curitiba a única opção é o internamento, e também, que muitas famílias venderam todos seus bens para pagar tratamentos em clínicas psiquiátricas particulares. Afirma que estas famílias na maioria das vezes são enganadas, uma vez que, como já dito anteriormente, apenas quando há risco de vida para a pessoa ou para terceiros justifica-se um internamento.

O uso de drogas por um dos filhos leva a família a buscar tratamento para ele. Como geralmente há um grande sentimento de culpa, a família acaba optando pelo internamento. Na opinião do autor a família poderia estabelecer limites, não permitindo que o filho permanecesse morando com eles enquanto continuasse a usar drogas, para aprender a dar valor àquilo que tem em casa. A família poderia então de longe acompanhar como o filho está se saindo, pedir informações a alguém do seu grupo. Na opinião do autor, este seria o melhor tratamento.

O autor lamenta que em Curitiba ainda não exista a opção do NAPS ou CAPS [atualmente, em 2004, essa possibilidade já existe]. Na ausência desta opção, muitas pessoas acabam sendo encaminhadas para internamentos em instituições psiquiátricas.

Alguns aspectos de finanças pessoais são relatados pelo autor, relacionados com o presente livro e com o filme “O Bicho de Sete Cabeças”, baseado no livro. O autor acredita que o filme será de grande valia para que as reformas psiquiátricas no Brasil sejam antecipadas.

O livro é concluído com uma reflexão: “Crime não é apenas matar o nosso semelhante. É também deixá-lo inútil, matando sua iniciativa e vontade própria, transformando-o numa besta humana” (p. 167)

 

Apreciação pessoal sobre o livro

Referindo-se à experiência vivida pelo autor em instituições psiquiátricas, este livro não apenas traz à tona a questão da Luta Antimanicomial, como também, tem sido uma referência para a mesma. Em artigo publicado em agosto de 2004 no jornal Gazeta do Povo, houve referência ao fato de que em 31% das unidades psiquiátricas vistoriadas pelo Ministério da Saúde em 2003 o atendimento é insatisfatório. Embora não concordando com a proposta do autor em relação ao tratamento dos dependentes químicos – acredita-se que apenas quatro dias de internamento em muitos casos não sejam suficientes para conter compulsão pelo uso da substância, não há dúvida de que a desospitalizaçao dos doentes mentais venha a ser uma grande conquista.

Nome do autor da resenha e data: Psicóloga Zilda Langer. Novembro/2004.