Resenha de Livro
Curso de Formação em Terapia Relacional Sistêmica
Psicóloga Solange Maria Rosset

 

Nome do Livro:

Tempo e mito em psicoterapia familiar

 

Autor do Livro:

Maurizio Andolfi e Claudio Angelo

 

Editora, ano de publicação:

Artes Médicas - Porto Alegre/1989

 

Relação dos capítulos

     Cap.1- A construção da estória terapêutica
     Cap.2- Triângulo e redes trigeracionais
     Cap.3- Provocação e contenção terapêutica
     Cap.4- O jogo em terapia
     Cap.5- Construção do mito familiar e sua evolução em terapia
     Cap.6- Representação do drama familiar e rito terapêutico
     Cap.7- Os tempos da separação
     Cap.8- O mito de Atlante: evolução de uma terapia

 

Apanhado resumido sobre cada capítulo

     Cap.1- A construção da estória terapêutica
     O terapeuta como nexo relacional
     Como surge o dilema terapêutico da família quando inapta a tolerar as fases de reorganização necessárias para modificar o equilíbrio funcional inerente a um estágio de desenvolvimento e adquirir um novo mais adequado ao estágio sucessivo e como isto está expresso no pedido de "ajudá-la a mover-se, fazendo com que ficasse parada". A família procurava fazer com o que o terapeuta desempenhasse aqueles roteiros e papéis mais sintônicos à manutenção do status quo e que a tentativa do terapeuta de opor-se ao jogo já incluía sua participação e seu envolvimento. Tanto a aceitação como a recusa do terapeuta das atribuições funcionais a ele imputadas pela família compõem o movimento de construção de um novo sistema, aquele terapêutico, prescindindo das intenções que o animam. Significa que o terapeuta não pode prever seu efeito sobre a família a não ser de forma geral, como também não pode prever o efeito das intervenções da família sobre si mesmo. Pode prever que cada tentativa sua de mudança de valores e regras mantenedoras do equilíbrio do sistema produzirá, em certa medida, movimentos do tipo oposto.
     Ackerman descrevia a necessidade do terapeuta de entrar diretamente na corrente do conflito familiar, de fortalecer e influenciar os processos interativos mas também de saber como separar-se e adquirir um eu observador que se retrai para considerar objetivamente a própria experiência, observar e avaliar os eventos significativos e depois retornar novamente. O valor adquirido pelo si-mesmo do terapeuta na relação, o fato das intervenções passarem através do paciente-identificado ou de outros membros da família, em uma relação pessoal, colocam o problema: a) de qual seja a posição do terapeuta no processo terapêutico; b) de qual seja a estrutura da relação terapêutica; c) de como deve ser considerado cada indivíduo de per si no âmbito sistêmico.
     O terapeuta pode ser solicitado a desempenhar funções (pai mais amoroso, companheiro mais maduro) por não haver na família outros atores capazes de fazê-lo. Parece de pouca utilidade o evitar desempenhar papéis designados pela família como fazê-lo sem tomar consciência deles. Ao fazê-lo, pode obter informações sobre o significado daqueles vazios para seus interlocutores, pode funcionar como ativador e observador externo dos processos interativos, tornando-se ora espelho ora modelo para outros. Quando obtém informações não renuncia a si mesmo, como nexo principal; mantém-se constantemente a um metanível Criar continuamente novos relacionamentos triangulares e procurar ligar entre si os vários triângulos é um dos deveres principais do terapeuta, já que se coloca como ativador das diversas relações. Desta forma poderá experimentar-se também em novas posições relacionais e aprender novos modos de ser e colocar-se em relação com os outros. Para funcionar como nexo relacional do grupo familiar, o terapeuta deverá descobrir as condições em que cada pessoa se dispõe a envolver-se e a enfrentar riscos diretos para a mudança do grupo familiar. Compreender rapidamente como cada qual delineia o primeiro encontro e os sucessivos, quais cenários potenciais alternativos pode ativar em sua fantasia, quais riscos e quais desafios toleráveis e em que momentos, sem com isto interromper a relação.

 

     O primeiro telefonema
     Seja o interlocutor a pessoa mais envolvida com o problema ou a quem foi delegado apresentá-lo, ele adquire a função de intermediário da família e de garantia de seus equilíbrios em relação ao terapeuta, a quem é feita uma proposta de relacionamento; ao mesmo tempo, num plano pessoal pode tentar alianças e comportar-se com o terapeuta de modo a obter uma posição de destaque nas relações familiares, ou uma ajuda para melhorá-las, ou vice-versa, manter certos equilíbrios e vantagens adquiridas. O terapeuta está na tarefa de investigar preliminarmente alguns significados possíveis, começa a construir hipóteses triangulares e a traduzi-las em perguntas e deverá aceitar ou não o pedido. Esboça-se aqui o cenário da futura relação terapêutica.
Pontos nodais e tramas alternativas
     Por pontos nodais entendemos redundâncias comunicativas, freqüentemente ignoradas pela família, em geral de cunho não verbal ou paraverbal, que se prestam à construção de um "mapa relacional". São notadas pelo terapeuta que as usa para pontuar de modo diverso tantos as relações entre os vários participantes, quanto as ocorrências na sessão. Na união, o terapeuta procura contatar, tentando entrar no mundo dos interlocutores, percebendo-lhes a realidade através dos olhos e imaginando seus sentimentos, alcançando níveis ainda despercebidos a cada sujeito.
     A união permite perceber a situação psicológica atual dos membros do sistema e remontar, a problemas e condicionamentos a ela ligados. A união se faz essencialmente com quem funciona como elo de ligação com os membros restantes da família.
     Exemplo: "Com quem falei ao telefone? L: Comigo. T: O senhor é papai? L: Não! T: Você faz o papel de papai? L: Sim."
     O que é aparentemente uma coleta de dados se torna um meio apto a introduzir informações na estrutura perceptual do interlocutor. Assim, a união é um meio de junção e instrumento de mudança.
     O relacionamento terapêutico: entre a parte e o todo
     O terapeuta intervém no equilíbrio dinâmico entre o ser e o pertencer de muitos à mesma estória evolutiva, usando um movimento contínuo de ir e vir do indivíduo para a família; reconduz o que surge do relacionar-se com cada pessoa às interações e desta última com os outros membros do sistema.

 

     Cap.2- Triângulos e redes trigeracionais
     O triângulo como unidade de observação
     Descobrindo-se os processos perceptivos sendo "modulados" ativamente pelo sujeito, o mundo externo não é mais um dado objetivo, mas o resultado, o produto da interação entre os elementos do mundo externo e da atividade perceptiva da pessoa. Tal atividade se estrutura no tempo influenciada por processos de aprendizagem, assumindo importância especial os dados da estória individual, a conexão das vivências emotivas e o mundo emocional em geral. Portanto, cada indivíduo se torna, face ao sistema, um elemento potencial de entrada de novos estímulos.
     Neste capítulo é explorado um aspecto especial das hipóteses referentes à solução dos conflitos nos triângulos e à influência que a solução pode vir a ter no processo de individuação pessoal. A situação triádica mais comum, de pais-filho: este foi observado em sua função de elemento desviante do conflito entre os primeiros. Ressaltamos o aspecto protetivo, enquanto opera como "canal de defluxo" em situações de tensão entre os pais, ou opositor ativo toda vez que eles tentam definir diretamente, através de diálogo franco a dois, sem intermediários ou aliados, os motivos de desentendimentos na relação de casal. A renúncia ao uso de intermediários diminuiria a importância do seu papel de terceiro significativo e o colocaria numa posição de relativo isolamento, impedindo-o de tirar proveito da aliança com cada um deles. Quando surgem emoções muito violentas, seria privado da função de mediador usada para controlar os medos da ruptura de vínculos. Ele acrescenta uma dimensão desconhecida à interação, viabilizando alianças, além de nova relação de inclusão- exclusão delas descrita por muitos autores. Também pode estimular a manifestação de recursos individuais ocultados e a evolução do sistema; isto porque, na interação triádica, diferentemente da diádica, cada participante pode observar o que acontece durante a interação entre os outros dois. Desta posição de observador pode armazenar uma série de informações sobre cada um deles que lhe serão úteis quando, por sua vez, estará se conectando com um dos dois. Pode captar as emoções dos interlocutores, os gestos e as mímicas que os acompanham, o que os irrita, o que lhes dá prazer, etc., confirmando as próprias impressões precedentes ou surpreendendo-se com novos aspectos aos não havia prestado atenção. Notar como cada um enfrenta e resolve as dificuldades permite aprender comportamentos e modular eventuais tensões. Em períodos críticos, cada membro da tríade pode assumir a função de modelo na contenção e mediação de tensões existentes entre os outros dois. A presença do terceiro facilita a construção, manutenção e evolução da ligação, fornecendo o suporte necessário ao desenvolvimento e à integração de sentimentos recíprocos. Nos momentos de separação é útil para a elaboração da perda.

 

     Triângulos trigeneracionais
     Os indivíduos envolvidos nas relações trigeneracionais, se vistos considerando "suas interações com a família trigeneracional, tornam-se uma entidade complexa, cheia de contradições e conflitos. Um observador pouco treinado em perceber conexões implícitas entre comportamentos e vivências atuais e sensações antigas veria tal entidade complexa como fragmentária e desconectada; entretanto, para outro mais experiente nesse tipo de observação, tais modalidades interacionais se tornam elementos de compreensão do mundo interno desses indivíduos".

 

     As coordenadas familiares
     A compreensão do indivíduo e de seus processos de desenvolvimento parece ser favorecida pela construção de um esquema de observação que permita "ver" os comportamentos atuais de uma pessoa como metáforas relacionais, ou seja, como sinais indiretos de necessidades e envolvimentos emocionais do passado que encontram o espaço e o tempo para manifestar-se concretamente nas relações presentes.
     Assim, uma informação sobre como se expressa atualmente o relacionamento entre um pai e um filho (identificados respectivamente como segunda e terceira gerações) contém um aspecto implícito e complementar que nos informa também sobre como um pai percebe hoje a relação passada entre ele mesmo e seu próprio pai, transportando o conteúdo emotivo da informação a um nível superior (entre a segunda e a primeira gerações), podendo assumir o valor de verdadeiros códigos comportamentais.
Citamos aqui as relações que tramitam no eixo vertical, chamadas "genitorialidade". No eixo horizontal chamamos "conjugalidade". Neste caso, o espaço do casal num território mais vasto, as relações de conjugais se tornam um ponto de encontro e de síntese de duas estórias familiares diversas. O casal mais jovem se insere num fluxo temporal que apresenta as linhas do presente e do futuro parcialmente traçadas e baseadas em expectativas e exigências de gerações precedentes. Podemos observar quando uma pessoa procura e estimula no parceiro partes genuínas, estabelecendo uma relação de mutualidade ou quando o nível horizontal é determinado por funções de compensação parentais ou filiais não desenvolvidas harmoniosamente no plano longitudinal. Quando os modelos complementares de necessidades não satisfeitas influenciam a escolha do parceiro, inferimos ser a recuperação do próprio espaço generacional um modo de redescobrir o Si - Mesmo individual.
Pertinência e separação
     Pertencer e separar-se é um dos problemas que acompanham o homem durante sua existência, Durante a vida separamo-nos na perspectiva de novas uniões; cada união e cada sucessiva separação deveriam ser mais diferenciadas, se comparadas às precedentes. É impossível unir-se mais satisfatoriamente se antes não nos separamos de um esquema de relacionamento, no qual cada participante é incapaz de reconhecer o próprio espaço pessoal. Maiores as expectativas de proteção e segurança que caracterizam uma ligação, maior a ameaça potencial produzida por qualquer acontecimento que a questiona e a tendência é reagir com manifestações agressivas às pessoas que põem em risco a relação ou com atitudes que a resguardam. O que é mais evidente na relação a dois do que na familiar.
O autor fala de "registro de necessidade" como a forma assumida em cada pessoa pela falta de satisfação de necessidades relacionais com figuras familiares mais significativas. Essa carência permite ao pedido permanecer sempre atual procurando uma resposta continuamente em relacionamentos que possam preencher a "lacuna" inicial.
     O terapeuta delimita de quando em quando triângulos diversos, inserindo-se neles como terceiro elemento ou ativando, enquanto observador, um outro de seus componentes na procura de elementos de mediação e de uma trama alternativa. Também carrega um registro diverso de necessidade, isto é, não deve apoiar ou proteger este ou aquele membro da família, nem salvar relações a fim de manter a própria identidade. Mesmo que a estória seja parecida à dos clientes, supõe-se que ele conheça saídas diferentes, ao menos para si mesmo.

 

     Cap.3- Provocação e contenção terapêutica
     Sobre o conceito de provocação terapêutica
Entende-se por provocação um comportamento verbal ou não-verbal, em geral intencional, de desafio ao sistema, propondo uma espécie de teste de força, com a finalidade de modificar as regras de funcionamento. Para ser terapêutica, precisa ser acompanhada por uma operação de união, isto é, deve conseguir transmitir que o terapeuta está com o sistema, ao mesmo tempo em que o ataca.
     Os fatores que determinam a existência de uma provocação são:

          a) que a provocação teste ou tente modificar, usando de certa força, normas ou esquemas perceptuais e comportamentais das relações;

          b) que se choque com uma rigidez peculiar aos mesmos ou que apresente aspectos da realidade tão novos a ponto de gerar uma forte tensão;

          c) que o contexto favoreça a manifestação dos elementos citados.

     Tais fatores reconduzem a um tempo e a um espaço onde se definem. Se a provocação é uma forma de relação, inclui três elementos: o terapeuta, a pessoa a quem é dirigida a provocação e uma terceira pessoa, cada um ocupando vértices do triângulo conforme seja o papel desempenhado na provocação.
     Ser provocatório significa tocar aspectos emocionais significativos para as relações familiares, ou atingir imagens perceptuais enrijecidas no tempo; trata-se de elementos que o sistema e seus componentes procuram manter inalterados, porque lidar com eles os deixa muito indefesos. São consideradas duas fases:

          a) fase compressiva: aumento da tensão interpessoal;

          b) fase descompressiva: canais de defluxo da tensão.
     O fio de Arianna: o "paciente identificado" como regulador do processo terapêutico.
     O paciente identificado serve como porta de entrada ao sistema familiar e atua como "mediador" com seus distúrbios, fornecendo a ocasião propícia à formação e ao desenvolvimento do processo terapêutico. O terapeuta estabelece uma espécie de cumplicidade com o paciente identificado, que será tanto mais útil e duradoura quanto mais implícita e não verbalizada. Primeiro evitando entrar o menos possível na esfera da classificação da patologia (mental, afetiva ou social); em segundo lugar, incentiva as partes sadias, sem confrontar-se com a única identidade "negativa" apresentada pelo paciente. Terceiro, investe-o da função de co-terapeuta. O paciente envia sinais, o terapeuta os coleta, organiza-os e traduz para o grupo. Devemos considerar o paciente como o fio de Arianna e não como Arianna: isto é, não devemos cuidar dele como indivíduo isolado com exigências e necessidades próprias, separando os dados de nossa observação dos aspectos funcionais de "fio" que o paciente nos mostra. O procedimento é seguir o fio e não cortá-lo, com adoções afetivas deste ou daquele membro da família, pois são riscos muito comuns para um terapeuta incapaz de manter distância terapêutica.

 

     Suporte individual e contenção familiar
     A ajuda à cada componente da família pode ocorrer de duas maneiras:
     l. diretamente a nível analógico, ao considerá-lo uma pessoa completa e competente; isto transcende a evidência dos fatos e dos papéis determinados pela família a serem representados na sessão.
     2. indiretamente, através da tentativa de transformar a terapia numa situação de aprendizagem onde cada um possa aprender a:

          a) reconhecer nexos e conferir significados complexos a fatos e emoções e, portanto, crescer;

          b) propor-se mesmo como recurso terapêutico, assim que surja um problema novo durante uma fase posterior do desenvolvimento da família.
     O terapeuta deve estar apto em aceitar até o fim o risco de induzir crises na família, isto é, de propor-se como agente de provocação e conjuntamente, de contenção de angústias e conflitos interpessoais na família, senão a terapia não se inicia ou não continua.
     O comportamento sintomático do paciente identificado pode ser visto como modelo de contenção dos problemas familiares. A intervenção terapêutica cria um novo modelo temporário de contenção, que permite dissolver as formas atuais do problema e repercorrer os caminhos que conduzem aos elementos originais. Vide caso Sara que vivia com os avós maternos e a analogia entre a dificuldade de segurar copos com a dificuldade de tocar um ao outro.

 

     Cap.4- O jogo em terapia
     Se também o terapeuta aprende a brincar
     Na representação lúdica está implícito um elemento de faz-de-conta que permite dramatizar desejos, medos e experiências dolorosas através de palavras e ações. O terapeuta deverá descobrir antes o valor do jogo para si mesmo e depois repropô-lo como instrumento de relação e de pesquisa em terapia. Saber brincar ajuda o terapeuta a não se levar muito a sério, isto é, a considerar as definições próprias e alheias, da realidade, como temporárias e mutáveis, ou seja, a produzir flexibilidade e incerteza nas próprias operações mentais. A maleabilidade mental pode ser seguida da mobilidade de um espaço para outro, a nível simbólico ou real, o que exige do terapeuta aprender a fazer amplo uso de si mesmo e das próprias qualidades pessoais (sexo, idade, gestos, formas de rir ou falar, de aproximar-se ou afastar-se, etc) modulando tais características segundo as necessidades do momento específico do processo terapêutico. Fazer papel ora de criança ora de velho sábio permitirá aos outros não permanecer bloqueados sempre nas mesmas funções estereotipadas. Seu trabalho consistirá na tradução de formas diferentes de pensar: o jogo poderá ser um estímulo eficaz para conectar o mundo dos adultos com o mundo das crianças.

 

     O jogo com objetos
     Elementos do jogo podem ser notados no uso da metáfora, no objeto metafórico e talvez em qualquer forma de terapia. O jogo é um meio de ampliação de realidade da família. Mas pode demorar um tempo para haver mudanças; o terapeuta deve saber tolerar e apreciar a precariedade de operações não concluídas. O tempo terapêutico deve ajustar-se ao tempo evolutivo daquele grupo e não o contrário. A escolha do objeto metafórico é um ato inventivo do terapeuta pelo qual ele introduz um novo "código" que define e interpreta o que ocorre; baseado neste código redefinirá relações entre os diversos membros da família e entre esses e o terapeuta.
O objeto se transforma realmente em porta de entrada no relacionamento, cria uma situação de crise familiar, e representa para o terapeuta uma maneira eficaz parra descentralizar-se; ele não é mais o terceiro de novos triângulos de tensão. O objeto funciona como co-terapeuta, permitindo ao terapeuta observar de fora o que acontece. "Sempre nos chamou a atenção a semelhança entre o objeto metafórico e os objetos usados pelos xamãs nos seus ritos de cura quando "retiram" a doença do paciente, concretizando-a numa imagem".
     Descrevem-se situações das quais o terapeuta, usando sua percepção extrai do contexto da sessão alguns detalhes, particularizando objetos-estímulos, conferindo-lhes um significado de sinais relacionais: o sapato, o coringa, o casaco, a balança, etc. O processo de metaforização parte do terapeuta e este o usa abrangendo o grupo familiar inteiro. Indica o traçado no decorrer das associações, enquanto a família fornece o material.
     A fim de avaliar o processo terapêutico, é interessante notar quando a família está em grau de apropriar-se da capacidade de inventar metáforas que acentuem as mudanças ocorridas em si mesma, ou pelo menos, quando comunicar disponibilidade em procurá-las.

 

     O jogo com palavras
     Pode-se brincar com palavras - próprias e alheias, construindo uma linguagem metafórica através de imagens que pincelam, camuflam ou transformam estados de ânimo, medos e conflitos negados, conjunturas disfuncionais e relacionais, etc. O mesmo sintoma apresentado pelo paciente ou pela família torna-se a metáfora de um problema relacional através de um símbolo polivalente. O terapeuta pode começar seu trabalho de associação e de reestruturação "brincando" com as imagens, cruzando situações distantes entre si, sintetizando lados contrastantes da realidade.

 

     O uso do humorismo e riso em terapia
     O humorismo e a risada se tornam ingredientes fundamentais no jogo relacional: o primeiro assegura uma espécie de continuidade sutil, um registro de contexto, capaz de garantir a todos a permissão de continuar a "brincar" com os problemas sem sentirem-se diminuídos ou culpados. A ambivalência instaurada no brincar ao "como se" priva o sistema terapêutico da tentação de recorrer ao mecanismo de culpabilização recíproca. O humorismo é o regulador do processo terapêutico, torna-se um instrumento de empatia no trabalho terapêutico. Se o humorismo consegue atingir algumas das regras relacionais da família, as mais recônditas e mudá-las de nível, produzir-se-á um aumento de tensão, indispensável ao início de um processo de mudança.
     Vemos o jogo como meio de contenção das angústias interpessoais de um grupo, que concentra-se e as dirige sobre o comportamento do paciente identificado, tornando-o um eixo insubstituível de toda a estrutura emocional da família. A contenção de angústias funciona como apoio e inclui a tarefa complementar de desmascarar medos. O jogo terapêutico amplia a fluência das informações e diversifica suas direções, devolvendo assim, à família, um tempo evolutivo.

 

     Cap.5- Construção do mito familiar e sua evolução em terapia
     Formação e elaboração do mito familiar
     A família sadia é uma subcultura formada no decurso de muitas gerações, através da mudança de papéis e funções no tempo ( e as conseqüentes crises de identidade); quando estas mudanças não são permitidas, podem surgir problemas que se estruturam em relações patológicas. Isto ocorre especialmente quando a delegação de papéis e funções se enrijece tornando-se irreversível e contrastante com a biológica, ou seja, quando se constrói um mito familiar contrastante com a realidade biológica e cultural em que vive a família.
     O mito parece colocar-se numa área intermediária onde a realidade e a estória se mesclam à fantasia para criar novas situações em que os elementos originais são utilizados e conectados entre si. A base de desenvolvimento parece situar-se nos problemas não resolvidos de perda, separação, abandono, individualização, nutrição e provação, enquanto a trama parece seguir o livro dos créditos e débitos intra e intergeneracionais, determinando o surgimento e a evolução dos vários papéis a serem desempenhados pelas pessoas envolvidas, seguindo temáticas de culpa, reparação, procura de perfeição, etc, comuns em cada estória familiar. Os símbolos e as metáforas são as pedras angulares na construção dos mitos, eles se desenvolvem ao redor de temas principais que funcionam como organizadores de contexto e de significado; entre estes se inserem os conteúdos simbólicos e vivências emotivas a eles relacionados.
     Mito individual e mito familiar estão interligados e se desenvolvem ao mesmo tempo. Há uma espécie de "organização hierárquica" dos mitos. O mito individual, aparentemente privado de relação com o familiar, contribui para o cumprimento e satisfação deste último, no plano das relações transversais (família atual) e longitudinais (família trigeneracional). Para criar um mito e compreender seus significado, deve-se considerar, pelo menos, três gerações: no que concerne a casamento, filhos, profissão, vida em geral, as expectativas de cada pessoa se tornam mais claras se abrangerem, além de suas experiências passadas, as expectativas de seus pais a seu respeito e como estas foram, motivadas por outras correspondentes nas respectivas famílias de origem. Mitos são estruturas que se constroem e se modificam no tempo.
Mito, "registro de necessidade" e terapia
     Pode ser que um mito se reproduza em gerações sucessivas, mantendo sua estrutura e papéis designados a cada um. Se a finalidade do mito fosse apenas homeostática, não haveria evolução, mas uma repetição dos mesmos problemas relacionais. Porém, não é assim: há mudança da trama mítica porque no decorrer do tempo podem modificar-se as funções até então designadas a algum membro da família, mudando o projeto relacional. Em qualquer momento da vida individual ou familiar, especialmente nas fases críticas da existência (nascimentos, mortes, casamentos, mudanças de idade, etc), há problemas ativados por eventos específicos que colocam em movimento certas "constelações míticas", isto é, ativam elementos especiais de papéis da estrutura mítica solicitados naquela situação específica. É indispensável decifrar o "mandato" ou a "delegação" designada a cada um, caso se deseje modificar o desenvolvimento do mito; tal modificação opera-se introduzindo elementos indutores de mudança.
Registro de necessidade é a forma específica que assume em cada pessoa a falta de satisfação de necessidades espaciais de relacionamento com as figuras familiares mais significativas. Isto permite que a falta permaneça sempre atual e procure continuamente uma resposta, através de formas compensatórias de relacionamento, da "falta" original. Estas se mostrarão inadequadas à satisfação das expectativas nelas colocadas, devido à correspondência apenas parcial das pessoas que deveriam satisfazê-las (por exemplo, o parceiro "não pode" ser "o" pai ou "o" irmão, etc).
     Vejamos como hipotizar uma intervenção terapêutica. O terapeuta é a pessoa que pode pedir e pede para enfrentarem certos riscos e trazerem à sessão as pessoas com as quais uma confrontação lhes é mais útil por ser mais temida. O terapeuta representa quem, em alguns aspectos, une a fim de separar. De fato, retomar caminhos que levam das relações atuais àquelas de origem e permitir o emergir das ligações de dependência e de afinidade, onde parecia apenas haver diferenças e ausência de comunicação, significa trazer à tona a trama "ausente" e identificar os fios, reais ou imaginários, a serem separados. Equivale a conferir-lhes significados diversos e moldar a nova estória. A possibilidade de reequilibrar as dinâmicas intergeneracionais é a condição sem a qual não há maturidade psicológica, autonomia e autoridade pessoal. Reparar o relacionamento com a família de origem significa trazer à luz os elementos subjacentes da delegação, sobre os quais se construíram, as atribuições funcionais de cada um, desvendando as afinidades (emotivas, de caráter, de valores, etc) que baseiam a ligação.

 

     Mito familiar e ritos familiares
     Os ritos são uma série de atos e comportamentos estritamente codificados na família, que se repetem no tempo e dos quais participam todos ou uma parte dos familiares. Parecem ter a tarefa de transmitir aos participantes valores ou atitudes peculiares ou modalidades comportamentais concernentes a situações específicas ou a vivências emotivas a elas relacionadas. Também servem como suporte ao significado que cada membro da família se atribui, enriquecendo-se no tempo de novas valências e propiciando uma estrutura (como os registros de contexto) pelas sucessivas transformações do mito familiar. O rito tem como função transmitir e perpetuar o mito familiar. Os ritos familiares são influenciados pelas convenções e valores do ambiente cultural externo à família fazendo-os em parte sobreponíveis aos ritos sociais. Têm função de aprendizagem; através deles cada membro da família aprende a conhecer os outros e a comportar-se de modo adequado em relação a eles; aprende a identificar os pontos fracos e a assumir a atitude mais adequada à consecução dos próprios objetivos ou à satisfação do desejo dos outros.

 

     Cap.6- Representação do drama familiar e rito terapêutico
     Como permitir a ação dos sintomas
     A rigidez do sistema familiar pode ser avaliada tomando como base a repetição dos modelos de interação que permite a cada componente "jogar de olhos fechados" a parte designada.
     O objetivo terapêutico prioritário consiste em romper a rigidez dos modelos interacionais estereotipados; é de vital importância destacar o momento em que ocorre o pedido de terapia por parte da família, podendo decorrer anos até a família decidir-se a pedir ajuda. Como contatar com estas partes vitais da família é a base necessária para iniciar uma relação terapêutica. A experiência ensinou que a fim de romper é preciso não interromper, ou seja, deve-se prescindir de qualquer tentativa de quebrar abertamente a rigidez ostentada pela família, enquanto pouco frutífera e metodologicamente errônea. Propomo-nos como guardiões da rigidez apresentada pelo sistema a fim de permitir-lhe experimentar como mais flexível. Pedir-lhes que se exponham é a melhor estratégia de driblar resistências eventuais e entrar em contato com a organização familiar.

 

     Intervenção ritual
     A prescrição de trazer objetos à sessão se torna uma maneira eficaz para ritualizar o que é representado. O ritual familiar por pertencer ao plano da ação, é muito mais próximo ao código analógico que ao digital. Assim, prescrever que uma mãe: a) procure o capacho que se assemelhe mais à relação com seu filho; b) traga o capacho à sessão para que todos, observando a semelhança entendam melhor seu mal estar, assume um caráter ritual que confere uma solenidade à uma operação crítica.
     O autor fala em colocar as polaridades opostas em ação, pois isto talvez permita recompor os elementos de contradição tão essenciais em qualquer indivíduo, cujas partes são distribuídas entre mais interlocutores. Na sessão, o capacho, o verme, o grão de arroz, se convertem em imagens concretas com forte ressonância emotiva, ao redor das quais, para cada família, é construída uma espécie de ritual simbólico; relações, sentimentos, mudanças, podem ser representadas usando objetos banais ou comuns, assim que estejam repletos de significados relacionais.
     O uso do rito na terapia parece eficaz porque não conduz a um código aprendido para sempre, mas representa um estímulo constante e portador de novas informações. O autor utiliza o caso do rito do trono ( senhora Lea com depressão e forte uso de farmacologia. O terapeuta senta-a no trono para indicar sua relação de "rainha" com o marido e filhos como súditos).

 

     Cap.7- Os tempos da separação
     O paradoxo da separação
     Falar de separação é um paradoxo. Separar-se é um processo em que união e separação estão estritamente conectadas e interdependentes. A solução do paradoxo surge com o tempo. Romper uma ligação pode expor aspectos e potencialidades pessoais latentes e ritualizar ou focalizar relações mais antigas e ainda não resolvidas com a própria família de origem. Coloca em questão o filme Cenas de um Casamento de Bergman.

 

     Espaço e tempo: parâmetros de mudança
     No âmbito terapêutico, o processo de união entre a família e o terapeuta se inicia desde o primeiro telefonema com todas as expectativas que o acompanham.
     O terapeuta entra diretamente em jogo no processo de união e separação, quando procura aproximar-se o mais possível do mundo da família, para separar-se deste mundo quando propõe novos triângulos ou toma a posição de observador. A provocação também tem esta função dupla, de unir e separar alternativamente os componentes da família no decorrer da terapia.
     Bateson afirmou que aprendemos alguns contextos nos quais se situam fatos e objetos e que a aprendizagem mais difícil é aquela do contexto dos contextos, isto é, a aprendizagem do contexto que abrange os vários contextos. Os contextos que se sucedem em nossas experiências de vida são "separações" uns dos outros, até a morte, que é a separação por excelência. Como manter uma continuidade, não obstante as diferenças e as perdas? Uma solução é a negação da realidade; outra é captar um contexto que aponte uma nova maneira de unificar as diversas experiências de separação. Um trabalho de "reconstrução" tem como tarefa principal descobrir elementos mediadores que apoiem e suturem situações contraditórias. O terapeuta se torna um meio de união de contextos e de experiências diferentes. O espaço terapêutico, converte-se em ponto de encontro de contextos diversos e longínquos no tempo e em local de construção de um contexto dos contextos.
     O tempo entre sessões segue o ritmo da relação terapêutica e sua evolução natural. Os intervalos concedem à família e ao sistema terapêutico o tempo necessário para elaborar os estímulos introduzidos e criar elementos novos, sua duração reflete as diversas fases da terapia. O tempo terapêutico deverá entrar no tempo evolutivo do grupo familiar e não vice-versa. Tempo para responder questões importantes. Há um tempo e um espaço de depósito e elaboração de estímulos significativos deixados em aberto na terapia; estímulos que poderão produzir mudanças externas- comportamentais e internas-cognitivas em tempos diversos, mesmo muito extensos.
     Assim, o desaparecimento do sintoma do paciente não é o elemento central; uma terapia é bem sucedida quando:

          a) o comportamento do paciente identificado aparenta estar profundamente modificado, os sintomas desapareceram ou diminuíram de intensidade;

          b) a família se reapropriou de seu tempo evolutivo e o paciente identificado não tem mais a função de bloqueá-lo, colocando-se como centro de existência do grupo.      Pode-se falar livremente de outras relações, mesmo de problemas ainda não resolvidos entre este e aquele componente da família, sem que o paciente esteja envolvido ou sem que ele jogue antecipadamente sobrepondo-se à conversação. O resultado positivo no item b) é mais importante que o do a).

 

     A avaliação à distância
     Sugerimos que sejam usados para seguimento os mesmos critérios que guiam nossas operações mentais durante o processo terapêutico. Temos de notar se e em que medida mudou para o paciente e para a família o significado relacional do comportamento sintomático e dos comportamentos satélites que o emolduram. Se os sintomas desapareceram devemos observar como se modificaram a configuração relacional familiar e o espaço pessoal de cada um, paciente incluído.
     Se o objetivo terapêutico visa reativar o tempo evolutivo da família (operação que chamaremos de normalização da situação patológica), devemos observar em que medida a família conseguiu reencontrar uma dimensão temporal em que seja possível o presente, não como repetição do passado ou esquema obrigatório para o futuro. Estamos mais interessados em avaliar à distância as capacidades organizadoras e reorganizadoras da família que o comportamento de um de seus membros. Como o impasse que as trouxe à terapia foi transmutado em oportunidade de crescimento.
     A cisão do sistema terapêutico ocorre num processo de separação que se delonga no tempo com uma progressiva dilatação dos intervalos entre as sessões; poderia quase dizer-se que o fim da terapia, por si é uma espécie de primeiro seguimento. A variedade de procedimentos inclui o seguimento como continuação sutil de uma terapia em que os intervalos vão se ampliando e a família utiliza na vida o aprendizado do consultório. Em cada indivíduo existe um local de depósito mental e um tempo de elaboração dos estímulos significativos introduzidos pela terapia. Tais estímulos produzirão em cada indivíduo mudanças externas: comportamentais e físicas, proporcionando uma reorganização. Mudanças de relacionamento e de funções interpessoais poderão refletir-se em mudanças ambientais: decoração nova, novas atividades de trabalho, etc. indicando expressões de vitalidade recuperada na família. Após a cisão do sistema terapêutico, outra maneira de manter viva a terapia consiste em dar ao paciente ou a seus familiares objetos saturados de significados metafóricos e implicações emotivas. Exemplo do terapeuta que entregou um coringa à paciente mediante o trato de que o devolveria quando não precisasse mais usá-lo no lugar de cartas em falta.

 

     Evolução para outras formas de terapia
     Na prática clínica, tornou-se freqüente a solicitação de terapia individual pelo paciente identificado ou por algum parente após o término da terapia familiar, ou que a mesma desemboque em terapia de casal.

 

     Cap.8- O mito de Atlante: evolução de uma terapia
     No primeiro capítulo tomamos contato com a família Penna, composta por uma viúva e oito filhos; esta família foi trazida para terapia por Lucio, aquele que "faz o papel de pai". Dino é o paciente identificado. O caso foi tratado por M. Andolfi em treze sessões, contando com a consultoria de C. Whitaker numa delas. O título Atlante refere-se à lenda grega na qual o gigante Atlante foi condenado por Zeus por ter ajudado os Titãs, filhos de Urano (personificação do Céu) e de Gea (personificação da Terra), de elevada estatura e força, contra a nascente estirpe dos deuses do Olimpo. Devido a sua intromissão indevida nos negócios entre o Céu e a Terra, o poderoso gigante é esmagado para sempre pelo peso do mundo e sua liberdade é vinculada à carga de uma responsabilidade sobre-humana. Dino representa este papel carregando os territórios depositados nele pelos irmãos. De início observa-se o pai morto no mito familiar, endeusado como aquele que sabe e Dino não sabe nada, perpetuando a lembrança do negativo. Ele é o filho que se situa entre os maiores e os menores, não sendo por acaso o portador dos sintomas. Retomar seus territórios, permanecendo no grupo é o objetivo a ser alcançado para romper o mito de Atlante.



Apreciação pessoal sobre o livro

     Como de hábito, esta é mais uma obra de dois autores que aprecio. Tempo, mito e rito são assuntos de relevância em qualquer terapia, não apenas em terapia familiar ou de casal e que tive oportunidade de aprofundar a compreensão acerca do assunto através deste livro. A linguagem técnica escrita de forma tão viva e fluída faz o tempo de leitura transformar-se em aprendizado muito leve e fácil.

 

Nome do autor da resenha e data: Cleia Mara Perez - julho/2000.